Era domingo, dia das crianças. Apenas uma lembrancinha, mas não queria passar em branco. Uma lembrancinha relevante. Algo do gosto do sobrinho. Demos a ele. Ainda com a dificuldade de alguém que tem 2 anos e pouco, ele não conseguia rasgar o papel de presente. O tio colocara fita adesiva de mais, mas a tia ajudou. Ele gostou, sorriu, falou o nome do personagem que tinha em mãos, mostrou pro pai. Brincou uns 2 minutos e largou lá no sofá. Pegou novamente horas depois.
Divertiu a família no almoço, falou aquelas coisas que não se espera de crianças “o coisa!”. Fez bolhas de sabão com a tia. Comeu maçã, tentou dar também para o Filomeno, o jabuti, a quem chama intimamente de “Menon”. Subiu ,desceu, correu para lá e para cá. Mostrou ao tio uma árvore que sua avó plantou no jardim de inverno, cuja espécie só fez-se entender bem depois, quando ele apontava e falava “tanga”, que se tratava de um pé de pitanga.
Miguel brincou com todos, alegrou-se no dia que comemora a fase que vive, ainda que não soubesse disso. Na hora de colocar o sapato e ir embora, fez birra, nada de colocar os dois, queria andar com um pé só. Mas seu pai apelou para saudade da mãe que naquele momento trabalhava, em pleno domingo infantil. Ok, vamos, por ela eu vou. Meio a contragosto entrou no carro, segurando o copinho com o qual fazia bolhinhas de sabão, seu pai o colocou na cadeirinha no banco de trás. Enquanto todos o olhavam, e seu tio brincava com ele através do vidro, seu pai sem que ele percebesse, pegou o copinha das bolhas de sabão e deu ao tio. E ainda antes que o progenitor terminasse a sentença “some com isso daqui se não ele vai fazer sujeira”, o tio coloca a argola no copinho mexe sopra e faz uma grande e bela bolha de sabão.
Choro. Ele ficou sem seu brinquedo. Agora o tio, ainda que não adiantasse mais, escondia a diversão/possibilidade de sujar o carro, no bolso, meio sem jeito, sorrindo um belo e pálido amarelo. Choro, quase birra, choro. Você tem outro em casa, Miguel – disse o pai. De repente cessou. Quando o pai se colocava ao volante, Miguel com lágrimas nos olhos mas sem fazer barulho algum, mirou em outros olhos fixamente, os de seu tio. Não tirou os olhos dele. Primeiro pela janela. Depois com o movimento do carro, sua cabeça pendeu para baixo e pelo buraco do encosto do banco do passageiro da frente ainda perseguiu a vista daquele que há pouco tempo brincava com ele, mas que agora o traíra. Sério, não bravo. Sério triste e sincero, ele perseguia o olhar do tio. Não reclamava do pai que tinha feito certo, mas o tio que sem motivo o atraiçoara.
E eu entendi, recebi o manifesto calado e justo, que mais do que qualquer grito, birra ou choro invade o coração de forma pungente. Usando também o meu olhar, assustado com a profundidade da expressão e dos sentimentos de uma criança de dois anos, tentava lhe pedir perdão. O carro saía da garagem, chegava à rua, e eu dizendo tchau me vi colocado na parede por ele. Encurralado sem violência alguma, mesmo depois que ele foi embora, fiquei preso pelo amor que ele sentia por mim e que o fizera me olhar firme, dizendo muito mais do que em qualquer outro tipo de comunicação. Os olhos de Miguel foram tais quais os da ovelha muda.
De certa forma compreendi um pouco melhor a coisa da ferida e do perdão. Bom será me lembrar disso sempre que magoar ou for magoado. Sei que ele me perdoou, pois culpa é coisa que gente grande sente e coloca nos outros, não cabe no enorme coração infantil. Sei que estou livre, sem dívidas. E uma coisa de tudo isso é certa, nunca me esquecerei dos sinceros olhos de Miguel.
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