UM DESENHO POR SEMANA

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quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O bloquinho do fundo do baú

Ontem descobri o porquê na era dos tablets e smartphones ainda uso o bloquinho. Não, não é pelo charme. É por uma questão de história, ou melhor da minha história. É pelo registro duro, pela lembrança contada, mas também física, densa, palpável. Eles, os bloquinhos, me são tão caros como o são relíquias, do fundo do baú mesmo. Se há aqui algum tom nostálgico, desejando o poético, não é proposital (percebo isto enquanto escrevo).

O bloco conta uma história, às vezes desfragmentada, é verdade. Um pouco do seu sentimento dali, de uma anotação daqui, uma lista de compra, um rabisco despreocupado. Mas no final, cada folha relata os fatos ou sensações daquele momento, e no todo é possível montar o esqueleto do dinossauro ali impresso. De uma capa a outra estão dicas, pegadas, indícios de uma época, tenha ela ocorrido há dez anos, dois ou um mês. Essa é a diferença para um diário, no qual o registro é proposital. No bloquinho, o registro acontece, assim, meio impressionista.


Escrevo esse texto num deles, não por nada. A ideia me veio em uma padaria, à espera de um amigo. Estou aqui na companhia dele, o bloquinho, no clima do caderno do Toquinho esquecido no fundo da mochila. Abri-o. Na busca de folhas brancas, acabei vendo os primeiros registros do planejamento do Purê ali. A decisão de tornar um projeto em algo real, fundamentar suas bases, estipular passos, criar nome, traduzir o conceito em palavra, ícone etc. Decidi continuar a ver o que mais tinha ali. 

Outras folhas lembraram-me de outras viagens, particularmente uma de verdade, feita no início de 2013. Detalhes e impressões anotadas em forma de poemas, desenhos ou frases soltas. Sorri, pois algumas delas talvez eu perdesse não fosse o bloquinho. As centenas de fotos e videos não conseguiram registrar o que minha mente percebeu através de cada sentido. Os rabiscos durante os trajetos foram mais próximos que os cliques apressados de turista deslumbrado com cada atração sonhada e agora vivida.

No mesmo bloquinho pude ver a evolução do meu sobrinho de sete anos, pois, desde que ele conseguiu pegar em uma caneta vem escrevendo e ilustrando lindamente em meus cadernos. Vi os registros de contos, dos mal passados aos crus. Vi planos feitos e falhos, rascunhos que não foram pra frente, rabiscos que deram errado no primeiro toque do lápis no papel. Vi até momentos sem pretensão, jogos para a diversão pura e simples, listas de natal, de compras.

Nesse exemplar em particular, vi  que os tais bloquinhos que chamam por aí de moleskine, não são sacros, profissionais, bacanudos ou intelectuais. São apenas cadernos de anotações e, independente de capas estilo escolar, de couro, vintage, ilustradas por designers ou fabricadas por talentosos artesãos, todos tem o mesmo fim: ser completamente rabiscado, sem dó, com aquilo que você tem na cabeça, nos olhos e nas mãos. Afinal são só bloquinhos. Vai saber a razão de eu gostar tanto deles.  

ps. Esse da foto foi feito pela Regina
ps2. O texto foi gestado no bloquinho há uns 7 meses, redigido na nuvem há uns três ou quatro e postado só agora.  Se ele tem registros mais de 2013 do que de 2014, essa demora em postar é, em certa medida um registro do ano corrente.
ps3. Da mesma forma, no post original não há menção ao meu filho, hoje com 3 meses. Ele não está no bloquinho, senão pela percepção louca de realizar muitas coisas antes de seu nascimento. Assim, esse é um bloquinho pré-Pedro.



quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Quando penso no futuro não esqueço o meu passado

O bom de se ter irmãos mais velhos com uma boa diferença de idade é que você recebe o presente de ter alguém passando pelas coisas antes. Você absorve possibilidades, ainda que inconscientemente, para o próximo passo dado no crescimento.

É assim também com o que se vê, se ouve por aí. Enquanto você aspira ser como aquele alguém que sai com os amigos, compra os próprios discos, se veste como quer, enfrenta o mundo, aprende algumas coisas mais cedo.

Foi assim comigo. Tenho dois irmãos mais velhos e foi pelos caminhar deles que aprendi a gostar de esporte e a escutar música. Pelos ouvidos deles, ainda menino escutei o que imagino, a maioria das crianças de sete, oito anos não escuta. Fui apresentado ao Beatles, depois a todo rock dos anos 80 enquanto ele acontecia com a melhor fase dos Titãs, Legião Urbana, Ira, Barão Vermelho, ouvi o pop “Zen Surfismo” de Lulu Santos e tive minha primeira experiência de blues com o Sr. B.B. King, nunca imaginando que um dia estaria tocando uma guitarra, usando a blue note dentro de uma igreja.

Mas o meu destaque aqui não tem a ver com guitarras, mas com Viola, mais precisamente Paulinho da Viola.

Depois de assistir uma matéria sobre os 70 anos do músico que serão completados em novembro de 2012, vieram as lembranças.

Era meu irmão quem o escutava. Se as letras teoricamente não faziam lá muito sentido para mim na época, embora algumas  eu até entendesse, o samba elegante de Paulinho me era um som familiar. Lembro-me de gostar daquilo desde sempre. Não tive que aprender a ouvi-lo, como aconteceu, por exemplo com o Blues. A voz de Paulinho ao contrário de todo o rock oitentista - e aqui não há uma crítica – não protestava, me levava. Não gritava, sussurrava docemente, lamentos de amor, alegrias simples, e reflexões da vida.

Paulinho da Viola era o contraponto democrático, sem almejar ser. Era o violão sem aditivos, era o simples dizer e não o tentar ser ouvido. Era gostoso de ouvir e se no futuro suas letras seriam parte do que é escrever pra mim, tanto melhor.

Mas mudemos o tempo verbal, não era, é. Paulinho continua desfilando a elegância, fazendo seus instrumentos e de sete em sete anos criando novos álbuns sendo novamente o contraponto, criando e não produzindo.

Salve o samba, salve o contraponto.
Salve o conceito de trabalho do artista.
Salve os irmãos mais velhos.
Salve os setenta anos de Paulinho da Viola!

Trecho do DVD Meu tempo é hoje, 2003 (inteiro no link)

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Sonho é sonho


Carro conversível, uma bela estrada que passe por alameda de árvores, montanhas verdes e campos dourados. O dia tem um ensolarado de inverno. A estrada parece ser longa, quase não se vê carros. Uma canção toca no rádio em volume alto, mas não agride ouvidos, impulsiona o motor ao mesmo tempo que movimenta o vento, e exala os odores das folhas, grama, terra e do asfalto claro e da poeira. O motorista dirige sozinho com seus pensamentos e sorri se percebendo dentro de um plano de cinema bem clichê...

Eu era uma criança que sonhava um sonho adulto. Provavelmente para o eu com oito anos as sensações não fossem tão claras na cabeça, talvez só houvesse um contentamento que eu não entendia. E hoje as lembranças se misturam: a capa do LP com dois rostos em preto e branco, a banda que minha irmã curtia, um som dos anos 80. Um disco que não é exaltado, não é cool ou cult. Artistas que não são gênios, mas conseguiram o que para mim toda boa canção deve fazer: marcar, fazer alguém lembrar de algo, fazer parte da história de alguém, criar devaneios na mente, pregar peças, estimular sensações que você nunca teve.

Em meio a dezenas de boas atrações e outras não tanto que chegam aqui no Brasil, a banda responsável pela memória do adulto a partir de um desejo da criança, está fazendo seus shows, sem badalação, mas com casas lotadas. Isso me fez lembrar daquele quadro, a imagem de clip que me persegue por todos esses anos e realmente virou um sonho simples que um dia vou realizar.

Talvez eu tenha vivido coisas muito mais incríveis que aquela sequência de imagens e sons, mas memória a gente não escolhe. E ainda que eu não a viva na realidade eles já fazem parte de mim.

Ah, sim, tenho mais de 30. 


Os caras hoje, no show em São Paulo.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O auto-preconceituoso

Era final da década de 90.
Tempos de 6ª NBA na Band com comentários do Marcel (o jogador) que maravilhado falava sobre atuações memoráveis de atletas como Larry Bird do Boston Celtics, Isaia Thomas do Detroit Pistons, o maravilhoso Magic Johnson e é claro, do maior de todos, Mr. Michael “Air” Jordan. 

Um grupo de adolescentes ia sempre ao Parque Ecológico Emílio José Salim, na cidade de Campinas, para jogar basquete. Pertenciam a uma mesma fé, congregavam em uma pequena igreja de bairro.
Para eles não havia dia ideal, eram finais de tarde em dia de semana, manhãs de sábado e tardes de domingo, sem muita cerimônia. Mas aquele dia fatídico foi num feriado e além de simplesmente amigos adolescentes se divertindo, famílias, grupos de igrejas também apareciam por lá.

E foi nessa, que em um inocente jogo de vôlei “misto”, algo diferente aconteceu. Um homem, um pastor, estava ali com os membros da igreja onde trabalhava (não aquela onde os amigos frequentavam).  Enquanto o pessoal dele jogava futebol em outra quadra ele apareceu com a filha. Sem perder tempo uma das meninas do grupo perguntou se ele não queria jogar também. Ele aceitou, mas logo as meninas saíram, e os rapazes puderam jogar basquete novamente. 

Em um lance de jogo, o pastor, o homem, por não saber o nome dos que estavam jogando, soltou:
- Marca o paraibazinho ali! - O referido jogador, chateado com a alcunha dada, com a bola ainda em jogo, mandou em sua defesa:
- Eu não sou paraibano, sou paulista! 
O homem não se desculpou, e ainda continuou
- Ah, mas você é descendente” - enquanto soltava uma bela gargalhada, que irritou ainda mais o rapaz.
- Meus pais são aqui do sudeste, sou descendente de italianos, portugueses, negros e holandeses!
A bola havia parado. Nesse instante, o homem soltou a última:
- Só se for holandês do Ceará! – enquanto gargalhava novamente.

O rapaz não disse mais nada, ficou irritado o resto do jogo, não se divertiu mais. Sim, ele tinha toda aquela ascendência que havia vociferado contra o seu provocador, inclusive a holandesa. O adolescente tinha traços e sim tinha ascendência nordestina bem direta, avós paternos.  Tinha também a pele branca, branca, branca dos europeus, o cabelo e o nariz e boca característicos dos negros e olhos puxados de índio.

Mas ele só foi se perceber, se aceitar “em parte” nordestino, anos mais tarde através de sua namorada que um dia disse “eu sabia, tá na cara” quando ele falava de suas raízes.

Nesta altura do campeonato você sabe quem era o fedelho. Um bobo adolescente de 15 anos que se chamava Jean Marcel. 

Nesse tempo todo eu nunca manifestei seja em ação, palavra ou pensamento, preconceito contra qualquer nordestino. Mas manifestei contra todos e contra mim memso mesmo, quando me ofendi após alguém dizer que eu era um deles.

E hoje sim, posso dizer que sou. Não porquê tenho traços nordestinos, mas porquê sou como eles, sou brasileiro, graças a Deus. Sou fruto de tudo o que existe neste país, africanos, europeus e índios, nordestinos e sulistas. Sou paulista porquê nasci aqui, porquê 75% de toda minha família nasceu aqui, tenho o bom e o ruim de quem foi criado aqui. Mas cada traço do meu rosto diz que eu não sou de nenhum lugar, como diria Arnaldo Antunes, e de todos ao mesmo tempo. 

Lembrei desse episódio após aquela chuva de manifestações xenófobas no twitter. O preconceito existe e está mais perto do que a gente pensa e atinge a quem menos se espera. Às vezes está dentro da agente e ofende a nós mesmos. Eu já aprendi e me perdoei.

Espero que haja também arrependimento e aprendizado nesse país e que haja perdão. Só assim vai haver crescimento, não da economia ou do Estado, não das redes sociais, não só do povo, mas da gente como Nação. 

segunda-feira, 29 de março de 2010

Memórias não implodem

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Moro não muito longe da região da antiga Estação Rodoviária de Campinas. Por essa razão várias pessoas me perguntaram se eu ia assistir à implosão da estrutura inativa e degradada. Perguntaram se minha rua estava interditada, se dava pra ver do meu apartamento e se a poeira ia chegar até lá. Não dei importância, não pensei muito no assunto.

Ontem na data da implosão fui até a casa da minha mãe. Lá, minha irmã falou que gostaria de dar uma última olhada na rodoviária. Ri. Há pouco havia brincado ao saber de pessoas que no sábado realmente foram até lá olhá-la pela última vez.

Hoje de manhã, com a antiga construção já demolida, e pronto para escrever sobre outra coisa, lembrei que a antiga rodoviária não mais existia.
Lembrei que não mais veria o lugar. Comecei a recordar das viagens que fiz a partir dali. Todas as vezes em que fui para o Rio de Janeiro na casa do meu pai, inclusive a última e mais importante viagem há uns anos.

Recordei também da minha infância nas idas a Mogi Mirim, aqui perto de Campinas. Da saída e da chegada à rodoviária de lá, do caminho a pé até a casa dos meu tios, a batida de palmas no portão e o som alto vindo de dentro da casa. Lembrei também de ir buscar pessoas queridas na frente do antigo Quintalão.

Percebi que sim, a antiga rodoviária havia feito parte da minha vida. Não era para ficar triste ela não existir mais, até porquê hoje morando perto dela, via o quanto não trazia mais belas lembranças às pessoas. Também porquê lugares e estruturas são apenas coisas que podem ajudar na lembrança de pessoas e de experiências vividas e estas não dependem de objetos ou edificações.

Assim, lembrei sorrindo dos corredores da antiga rodoviária, pensando nos melhores momentos que passei a partir de lá, sabendo que muita gente também tem ótimas recordações. E que não, de maneira alguma, é motivo de riso alguém ter dado uma última olhada naquele lugar.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Chorar de tanto rir

No filme Antes de partir, ( The Bucket list, 2007), Jack Nicholson e Morgan Freeman fazem aquela famosa lista de coisas a experimentar nos últimos meses de vida. Ao ver o filme esse fim de semana, um dos itens da lista chamou minha atenção e me fez lembrar de um fato e refletir sobre ele.

Na lista havia coisas como “saltar de paraquedas”, “ver uma coisa grandiosa”, “fazer uma tatuagem” e o que me provocou lembranças, o item “rir tanto até chorar”.

Em nenhum das experiências, mesmo contemplando as pirâmides do Egito, as personagens carregavam consigo câmeras ou filmadoras. Óbvio, estavam para morrer, iam guardar lembranças para quê? Bastava a eles aproveitar sem se preocupar com o amanhã.

De um tempo para cá passei a ser daqueles que tira foto de tudo, grava tudo. Já tiraram sarro da minha cara por isso, minha esposa já até brigou comigo por isso uma vez. Fiquei assim depois que percebi que diferente de muitos amigos eu não tinha lembranças palpáveis ou visíveis de muitas ocasiões felizes da minha vida. Ao casar, decidi então que não perderia nada desse novo começo, até porque se na multidão de fotos uma fosse irrelevante era só apagá-la.

Foi então que ao ver o filme lembrei de um fato pré câmeras digitais, bem antes de casar, bem antes de minha promessa de registrar o máximo possível da minha vida. Era um item da lista dos dois senhores, provavelmente o dia em que mais ri na minha vida, até chorar.

Três jovens amigos no lado de fora do que chamávamos de chácara, um lugar de refúgio, descanso, curtição e relaxamento. Era uma madrugada fria. Envoltos em cobertas, sentados naquelas cadeiras de plástico, conversávamos. Falávamos sobre o que estávamos fazendo, sobre o que queríamos, sobre o futuro.

Falávamos sobre pretendentes ou não a futuras esposas. Uma em particular de um membro do trio ali presente. Conversávamos sobre o que ele esperava da pessoa com quem passaria o resto da vida. E tirávamos sarro disso. E brincávamos com os requisitos e ou a falta deles, e não senhoras e senhores, não falávamos de atributos físicos.

Uma piada bem sem graça se tirada do contexto saiu. A moça não servia, “Ella no tiene diploma” ele soltou em bom portunhol. E assim começou, com essa frase ridícula, uma sequência de gargalhadas infinitas. Risadas com sons esquisitos, perda de fôlego, dor na barriga e o ápice, choro.

Rir tanto até chorar.
A lembrança que eu tenho é que aquilo durou horas e não me recordo como terminou.

Ninguém gravou, tirou fotos, não está no youtube ou em um clipe de casamento. Mas é a lembrança do dia em que mais ri na minha vida, ri até chorar.

Não precisamos registrar nada, é legal, é bom, mas nós não precisamos. Talvez registremos tudo com medo de futuramente esquecer de um ou outro momento, ou para ver quanta coisa fizemos na nossa vida. No entanto, ao lembrar daquele dia, percebi que momentos memoráveis são aqueles que ninguém esquece.

Talvez eu não me lembre da cor das roupas que vestíamos, que ano foi ou como terminou. Mas meus amigos e meu sorriso estão guardados ali naquela chácara, numa madrugada fria, na lembrança do dia em que mais ri na minha vida e que me garante sorrisos no rosto toda vez que me lembro.
Assim, sem fotos ou vídeos, apenas a recordação de um dia memorável.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

“Jean Marcier vai ser coroner”

Era a rima que meu avô, Jaime de Barros, fazia quando me via, na melhor prosódia do interior paulista. Pelo menos até há uns anos atrás. Desde então, já não me reconhecia. Aliás, reconhecia a poucos. Noventa e dois anos. Quantas pessoas conhecemos com essa idade?
Há tempos estou pra falar sobre a morte. Escrever sobre a falta, o hiato que uma pessoa deixa, não só para os seus, mas para o mundo, ao cessar de existir fisicamente (me perdoem a irreverência cartesiana). Esperava um momento propício, a morte de alguma personalidade ou algo que comovesse coletivamente. É, mas no final, o que me fez escrever aconteceu comigo, a morte de meu avô.

Minha primeira lembrança em relação à morte, como quase tudo na minha vida, tem uma referência musical. Era 19 de janeiro de 1982, não tinha completado 5 anos ainda. Tenho a lembrança da idade, a visão de um garotinho observando os altos bancos de um Opala. Na verdade não tenho certeza se minha mente me trai, se nessa época a família tinha um Opala, mas é como me lembro. Lá na frente meu pai dirigindo e minha mãe no outro banco. O engraçado é que não lembro de meus irmão estarem. Olhando do alto da estatura de minha quina de anos, via as árvores de alguma alameda passando, lembro da visão do céu nublado, tempo chuvoso como há duas semanas atrás no dia do falecimento do Seu Jaime. Sei que parece uma analogia vulgar, dia nublado e morte mas foi como aconteceu com meu avô e é como me lembro daquele dia de 1982. Enquanto estava perdido em minha própria viagem, vendo vultos de árvores e postes, no rádio um locutor noticiava o falecimento de Elis Regina. Era a primeira vez que alguém me contava a notícia de uma morte, um locutor de rádio.

Não importa como seja interpretada essa frase, o ser humano não foi criado para morrer. A morte, apesar de ser conseqüência natural e final do homem enquanto matéria, é uma violência à alma humana, msmo se pensarmos na perspectiva de uma alma imortal. Tanto para aqueles que vão como para os que ficam e sofrem. Independente da idade, a coisa da ausência permanente, é mais importante que qualquer vínculo. Toda morte é uma violência. Uns 20 anos depois daquele dia no Opala, percebi que a notícia me marcou nessa medida.

Dez entre dez cantoras amam Elis Regina. Dez entre dez artistas mais do que respeitam sua voz e interpretação incomparáveis. Já eu, desde que me lembro como pessoa com algum senso crítico, não gostava dela. Como isso é possível? Achava seus trejeitos bregas, suas expressões faciais exageradas. Parece que eu nem ouvia a sua voz e interpretação. Como disse, simplesmente não gostava dela. Mesmo depois de anos, já as voltas com música e músicos, continuava com essa sensação.

Até que há uns 5 anos, algo aconteceu que acabou mudando minha percepção da cantora. E só atinei para isso algum tempo depois. Um jovem artista fazia um pocket show num shopping de Campinas. Após assistir fui obrigado a comprar aquele que era seu segundo CD chamado “Intuição”. Por um tempo, eu, amante dos 3 acordes, me via atraído pela chamada nova MPB fruto em parte de filhos de artistas que também colocavam o pé na profissão, quase todos participando do até então projeto incipiente da gravadora Trama. Foi através do filho Pedro, que Elis teve redenção para mim. Comprei o CD, escutei muito. Não é um disco fantástico e Pedro Mariano não é um gênio da música ou um fenômeno da interpretação como sua mãe.É um bom artista. Mas a coisa de ver aquele fôlego novo ao vivo e ouvir sons diferentes do que eu estava acostumado me fez bem.
Não sei exatamente como ou quando foi, mas de repente comecei a prestar atenção no que realmente era Elis Regina como cantora. Talvez tenha sido também o lançamento em DVD do programa Ensaio, da TV Cultura, exatamente idealizado pelo outro filho de Elis, João Marcelo, que trazia a edição em que a cantora se apresentara. Só sei que estava ali, com um cara vivo da minha idade, curtindo música. Curtindo. Percebi de repente minha birra com a mãe do Pedro. Lembrei daquele dia de janeiro em que me foi apresentada a morte, no tom de voz solene de um locutor de rádio, a primeira vez que me deparei com o conceito.

E com as recordações, chuva, e vários sentimentos, essa auto-análise de livraria megastore começou a desembocar num texto. Assim, após a morte do meu avô, enquanto eu estava lá, sentado no velório, parentes indo e vindo, ligações e tal, quando dava escrevia. Lembrei que uma vez tinha pensado sobre a minha primeira experiência relacionada à interrupção da vida. Lembrei também, mais uma vez do meu sobrinho Miguel, agora com 10 meses. Sugerimos ao meu irmão trazê-lo até a casa de meu avô no dia seguinte, para ele ser o centro das atenções e aliviar a carga da família. Criança e idoso. Jovem e velho. Outra analogia vulgar? Pedro e Elis. Miguel e seu Jaime. Ces’t la vie.
Quanto a mim, não sou militar, nunca fui sequer soldado, mas em minha mente nunca vou deixar de ser aquele que “vai ser coroner”.

Trilha sonora:
Como nossos pais (Belchior)
In my life (Lennon & McCartney)

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