UM DESENHO POR SEMANA

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Me lembra


Olhou para a atendente e se esqueceu. Se esqueceu não só do que ia pedir. Não sabia o que aquele restaurante fast food, aparentemente da praça de alimentação do shopping, vendia. Não lembrava nem de estar com fome. Talvez quisesse apenas um refrigerante ou uma sobremesa. Ali não havia muitas opções de sobremesa. Estava ali para comer. O quê?

- Uma pizza - balbuciou. Percebeu pelas fotos e pelo logo escrito no uniforme da moça que o atendia que ali vendia pizza.
- Do quê - perguntou a atendente com um quase sorriso sarcástico, que evitou uma revirada de olhos mais sem paciência.
- Não sei... do que é que tem?
- Que tal Portuguesa?
- Mas só tem Portuguesa?
- Tem também Calabresa, frango com requeijão, portuguesa – enfatizou.
- Portuguesa, é, Portuguesa.
- E pra beber?
Apertou os olhos por uns 3 segundos como se quisesse multiplicar os impulsos nervosos no seu cérebro.
- O que é que tem?
- Água...também tem Pepsi, guaraná...
- Água. Quero água.
- Forma de pagamento?
Ele não sabia. Não lembrava nem mesmo se tinha dinheiro para fazer aquela compra. Rapidamente pensou que deveria ter, já que havia parado ali em frente. Apalpou os bolsos da frente e de trás da calça, procurou na camisa que usava sobre a camiseta, enquanto tentava novamente o milagre da multiplicação dos impulsos.
- No balcão, senhor.
- Como?
- Sua carteira...está aí à sua frente, no balcão.
Olhou para a carteira e não a reconheceu.
- É minha?
- É, o senhor tirou do bolso logo que chegou aqui no caixa.
- Tá, ok.
Abriu a carteira, viu os cartões, antecipou o próximo esquecimento - não se lembraria de senha alguma, precisava era do dinheiro. Achou 15 reais e mostrou para a atendente.
- Dá?
Com um sorriso solidário, monossilábica, a moça respondeu:
- Dá.
Em silêncio, ele esboçou também um sorriso misturado à sua expressão perdida.
- Seu prato fica pronto entre dez e quinze minutos - continuou a moça, entregando a nota fiscal com a senha.
- Ok, é isso então...é... obrigado.
Ficou, por mais intermináveis 8 segundos parado, alternando o olhar entre a nota e a moça. Ela devolvia o olhar para ele de uma maneira constrangida, porém solidária, quieta e desesperada por não poder fazer mais do que lhe entregar uma pizza e uma água dali há 15 minutos.
Virou o corpo lentamente enquanto ainda olhava a nota fiscal. Levantou a cabeça encarou a vista da praça de alimentação e das poucas pessoas que estavam ali. Do balcão, a moça olhava hipnotizada pela expectativa de saber para onde ele iria. Dada as inúmeras possibilidades, não tinha como escolher; ficou na mesa imediatamente à sua frente.

Sentou-se. Sobre a mesa havia um crachá. Seu crachá. Ali estava seu rosto. Começou a lembrar gradativamente de tudo, começou a se achar e se perder em suas memórias. Local de trabalho, os colegas, a rotina, as dificuldades, seu salário, seus chefes - o gente boa e o facínora explorador - as horas extras, as festas que não foi, os amigos que não viu, a viagem que não fez, a tia do café que lhe dava conselhos falando sobre os filhos, a decisão de largar tudo, o suor caindo do seu rosto, seu carro, os buracos do trajeto, a batida na entrada do shopping e Giovana.

- Giovana? - Balbuciou terminando com a boca levemente aberta
- Oi.
Olhou para o nome da atendente gravado no uniforme
- Giovana...
- Sua pizza. Você não estava olhando pra senha, resolvi trazer.

Ele ficou olhando para o rosto dela, e de repente lembrou de cada traço, cada cor e defeito. Lembrou do delicado jeito dela de ajeitar o cabelo castanho claro debaixo da touca escondida sob o boné. Lembrou da pizza portuguesa, do jeito que os lábios dela mexiam-se quando ela falava “portuguesa”.

- Eu preciso voltar. Mas você sabe, claro, a gente já tá nisso há quase 3 meses. Bom apetite.
Enquanto ela voltava para o restaurante, o cérebro dele há um minuto acelerado por uma tempestade de lembranças, acalmou-se com a visão de Giovana se afastando.
Ele se levantou, largou a pizza e a água intactos, pegou o crachá  e seguiu em direção ao restaurante. No caminho, arremessou o crachá no lixo e como se fosse a coisa mais lúcida do mundo gritou:

- Giovana! Giovana.


Um comentário:

  1. A procura da carteira lembrou-me alguém que você conhece muito bem.

    Muito bom!

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