UM DESENHO POR SEMANA

segunda-feira, 18 de junho de 2007

“Jean Marcier vai ser coroner”

Era a rima que meu avô, Jaime de Barros, fazia quando me via, na melhor prosódia do interior paulista. Pelo menos até há uns anos atrás. Desde então, já não me reconhecia. Aliás, reconhecia a poucos. Noventa e dois anos. Quantas pessoas conhecemos com essa idade?
Há tempos estou pra falar sobre a morte. Escrever sobre a falta, o hiato que uma pessoa deixa, não só para os seus, mas para o mundo, ao cessar de existir fisicamente (me perdoem a irreverência cartesiana). Esperava um momento propício, a morte de alguma personalidade ou algo que comovesse coletivamente. É, mas no final, o que me fez escrever aconteceu comigo, a morte de meu avô.

Minha primeira lembrança em relação à morte, como quase tudo na minha vida, tem uma referência musical. Era 19 de janeiro de 1982, não tinha completado 5 anos ainda. Tenho a lembrança da idade, a visão de um garotinho observando os altos bancos de um Opala. Na verdade não tenho certeza se minha mente me trai, se nessa época a família tinha um Opala, mas é como me lembro. Lá na frente meu pai dirigindo e minha mãe no outro banco. O engraçado é que não lembro de meus irmão estarem. Olhando do alto da estatura de minha quina de anos, via as árvores de alguma alameda passando, lembro da visão do céu nublado, tempo chuvoso como há duas semanas atrás no dia do falecimento do Seu Jaime. Sei que parece uma analogia vulgar, dia nublado e morte mas foi como aconteceu com meu avô e é como me lembro daquele dia de 1982. Enquanto estava perdido em minha própria viagem, vendo vultos de árvores e postes, no rádio um locutor noticiava o falecimento de Elis Regina. Era a primeira vez que alguém me contava a notícia de uma morte, um locutor de rádio.

Não importa como seja interpretada essa frase, o ser humano não foi criado para morrer. A morte, apesar de ser conseqüência natural e final do homem enquanto matéria, é uma violência à alma humana, msmo se pensarmos na perspectiva de uma alma imortal. Tanto para aqueles que vão como para os que ficam e sofrem. Independente da idade, a coisa da ausência permanente, é mais importante que qualquer vínculo. Toda morte é uma violência. Uns 20 anos depois daquele dia no Opala, percebi que a notícia me marcou nessa medida.

Dez entre dez cantoras amam Elis Regina. Dez entre dez artistas mais do que respeitam sua voz e interpretação incomparáveis. Já eu, desde que me lembro como pessoa com algum senso crítico, não gostava dela. Como isso é possível? Achava seus trejeitos bregas, suas expressões faciais exageradas. Parece que eu nem ouvia a sua voz e interpretação. Como disse, simplesmente não gostava dela. Mesmo depois de anos, já as voltas com música e músicos, continuava com essa sensação.

Até que há uns 5 anos, algo aconteceu que acabou mudando minha percepção da cantora. E só atinei para isso algum tempo depois. Um jovem artista fazia um pocket show num shopping de Campinas. Após assistir fui obrigado a comprar aquele que era seu segundo CD chamado “Intuição”. Por um tempo, eu, amante dos 3 acordes, me via atraído pela chamada nova MPB fruto em parte de filhos de artistas que também colocavam o pé na profissão, quase todos participando do até então projeto incipiente da gravadora Trama. Foi através do filho Pedro, que Elis teve redenção para mim. Comprei o CD, escutei muito. Não é um disco fantástico e Pedro Mariano não é um gênio da música ou um fenômeno da interpretação como sua mãe.É um bom artista. Mas a coisa de ver aquele fôlego novo ao vivo e ouvir sons diferentes do que eu estava acostumado me fez bem.
Não sei exatamente como ou quando foi, mas de repente comecei a prestar atenção no que realmente era Elis Regina como cantora. Talvez tenha sido também o lançamento em DVD do programa Ensaio, da TV Cultura, exatamente idealizado pelo outro filho de Elis, João Marcelo, que trazia a edição em que a cantora se apresentara. Só sei que estava ali, com um cara vivo da minha idade, curtindo música. Curtindo. Percebi de repente minha birra com a mãe do Pedro. Lembrei daquele dia de janeiro em que me foi apresentada a morte, no tom de voz solene de um locutor de rádio, a primeira vez que me deparei com o conceito.

E com as recordações, chuva, e vários sentimentos, essa auto-análise de livraria megastore começou a desembocar num texto. Assim, após a morte do meu avô, enquanto eu estava lá, sentado no velório, parentes indo e vindo, ligações e tal, quando dava escrevia. Lembrei que uma vez tinha pensado sobre a minha primeira experiência relacionada à interrupção da vida. Lembrei também, mais uma vez do meu sobrinho Miguel, agora com 10 meses. Sugerimos ao meu irmão trazê-lo até a casa de meu avô no dia seguinte, para ele ser o centro das atenções e aliviar a carga da família. Criança e idoso. Jovem e velho. Outra analogia vulgar? Pedro e Elis. Miguel e seu Jaime. Ces’t la vie.
Quanto a mim, não sou militar, nunca fui sequer soldado, mas em minha mente nunca vou deixar de ser aquele que “vai ser coroner”.

Trilha sonora:
Como nossos pais (Belchior)
In my life (Lennon & McCartney)

Um comentário:

  1. Puxa Coroner !
    Lamento pela partida do Seu Jaime.
    Pois é ... através desse meio de comunicação, ou seja, seu blogger, é que fiquei ciente da notícia.
    Seja lá qual for a mídia, a nota de falecimento é sempre assustadora ! realmente uma violência, principalmente para quem fica.
    Soube da morte da Elis Regina através da TV. Na época eu tinha 12 anos. Fiquei chocada. Como uma cantora que eu tanto gostava poderia ter morrido ? Piorou a situação quando me explicaram o motivo e o que era overdose.
    A partir daí, passei a detestá-la. Péssimo exemplo para uma pré-adolescente. Pensando bem nem tanto, pois me tornei "caretona".
    Não bebo, não fumo, adoro flores e a vida !
    Bjão
    Depois eu ligo pra sua casa pra saber como "as Nelis" estão se comportando !

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