UM DESENHO POR SEMANA

sexta-feira, 10 de agosto de 2007

O dia em que aprendi a tocar guitarra

Lembro-me daquele dia como se fosse amanhã. Era um fim de tarde, o vento batia na janela e movimentava a cortina. Quente, quente e seco. O vento era um alívio. Os acordes fluíam, as notas se sucediam quase que naturalmente. Muito sentimento indo direto para as cordas. Eu parecia o senhor King e as suas poucas notas que valem por mil. É, eu parecia o senhor King. Espere um pouco. Minha mente me trai. Na verdade, se me lembro mesmo bem, daquela melodia sofrida e verdadeira foram aparecendo riffs e acordes que iam da simplicidade à energia dos primórdios do rock’n roll do senhor Berry. E talvez fosse noite. É isso. Mas não dá pra esquecer que eu ia achando que estava ficando bom como Johnny, quando entrei sem nenhum aditivo, numa flamejante combinação de acordes, distorções, bombas, protestos e sentimentos. Técnica, rock, blue note e atitude. Passei de Jean a Johnny e de Johnny a Jimi.
Mas eu não contei tudo. No dia em que eu aprendi a tocar guitarra, fiz mais, passei de Jimi a Jimmy e se não construí escada alguma para o paraíso, elevei minha mente, minha alma a Deus com toda a sorte de efeitos, sobreposições de guitarras, executando sons, experimentando timbres, apenas esvaziando-me cada vez mais de mim toda vez que a palheta encontrava com as cordas. O tipo de coisa que não acontece de manhã. Eu falei que era de manhã?
O dia em que eu aprendi a tocar guitarra, encontrei três acordes nem sempre afinados mas eternamente jovens, que me faziam lutar por mim, por todos, pela ingenuidade, pelo benefício de ser momentaneamente tolo, pelo direito de ter um pedaço de terra no latifúndio da música, para dividir com meus pares.
No dia em que aprendi a tocar guitarra, fui canhoto novamente e me juntei ao pobre paulista percebendo que não seria jovem para sempre, e que mesmo assim a cada dia todos nos tornamos cada vez mais socráticos.
Foi nesse dia que despluguei a guitarra e entoei canções sobre o vento, sobre a liberdade, sobre mudanças, sobre paz. Foi nesse dia que toquei a Les Paul com sonoridade latina, brazuca, caribenha e me encantei pelo lado alegre da América, falando sobre a pobreza do povo e o amor de forma simples.
No dia em que aprendi a tocar guitarra não precisei mais errar para chegar ao destino. Nesse dia, aprendi que a harmonia é o desejo do homem lutando exatamente contra a sua própria natureza errônea e errante. Aprendi que a melodia é a sonorização de um pensamento que não se explica. Que o solo vem do que se tem de mais íntimo, é o sentimento livremente expresso, impulsivo, trazido quase que do inconsciente. Entendi que o acorde é a demonstração do sentimento latente que esta ali à flor da pele esperando um mover do corpo para sair.
Foi nesse dia que descobri que não existem artistas, que todo o ser humano o é em algum lugar dentro de si.
No dia em que aprendi a tocar guitarra, percebi que a música é sonho. Aprendi que como Deus e ao contrário do que dizem os acadêmicos, a música não tem lógica, é uma questão de fé, e por isso deve ser uma parte da criação que Ele acabou omitindo, mas, bondoso, deixou para nós. Foi nesse dia que a música perdeu todo sentido e passou a ser prazer. O dia em que a guitarra deixou de ser instrumento e passou a ser companheira.
Enfim, esse foi o dia em que eu aprendi a tocar guitarra. E esse dia, eu me lembro bem, minha bela mulher me olhava docemente e meu filho tocava God only knows para mim, na minha boa velha Les Paul alaranjada.


Trilha sonora:

Dom gratuito (sétimoselo)

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