UM DESENHO POR SEMANA

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Conto - Poesia Oxigena

Estava cansado. Não aguentava mais pensar e não ouvir nada vindo de dentro de si. Buscara fora, para acordar o que poderia haver dentro. Nada. Fez um café, bebeu uma, duas, três xícaras, copos, canecas, garrafas térmicas. “Chega desse café, o meu”. Desceu até a padaria da esquina, precisava dar uma volta, tomar qualquer outro café cujo o gosto não tivesse sido contaminado pelo nada que acometia sua mente. Talvez comer um pão de queijo. Respirar o bom e velho monóxido de carbono, que suja e ativa a mente. Balcão, banquinho, café no copo. Pão de queijo, um belo pão de queijo. Não via um assim desde aqueles que sua avó fazia quando era criança. “Pronto, vou escrever sobre minha avó!Vou escrever sobre minha avó...vou escrever sobre minha avó e...o pão de queijo...o pão de queijo?”. Afoita, sua mente engasgou com a primeira imagem que lhe chegava, e como se estivesse datilografando o pão de queijo que sua avó fazia, amassou o pensamento e o jogou no pires no qual ainda sobrava um pedaço do salgado.
Pensou em todas as técnicas que aprendera para preencher brancos no processo da escrita. Livros, dicas de antigos professores, antigos hábitos, nada o fazia voltar à fertilidade literária que um dia tivera. Até que irritado, percebera que sua mente não estava mais vazia. Só pensava na avó e no pão de queijo. Não conseguia tirá-los da cabeça.
Fugia dessas palavras como fossem fantasmas. E até há cinco minutos não eram. Não havia traumas, tinha boas lembranças, não era saudosista, não havia feito nada de mais com sua avó também. Não a havia abandonado, nada de recordações dramáticas de sua trajetória com ela. Talvez por isso ele não conseguia entender essa fixação.
“Rua, rua, eu preciso de rua.” Andava como se estivesse atrasado para o seu próprio nascimento. O que era toda aquela angústia? “Um simples branco! Todo escritor tem isso vez em quando. Tem, não tem?”
Passou horas andando, rápido, frenético, mas com o tempo e os quilômetros, foi diminuindo o ritmo. Foi diminuindo a fuga e a busca pela palavra. “Busca!” Veio à sua mente o substantivo com cara de símbolo filosófico. ”É isso que estou fazendo?” Busca, pela oportunidade de gritar Eureka! Que clichê!” Repreendia-se, por de repente ver-se num lugar comum bibliográfico. Não podia admitir tal mediocridade. Tudo o que não queria era ser raso, médio, o abismo para quem ganha o pão as custas da inventividade. “Busca, avó, pão de queijo...clichês, clichês, clichês”. Não estava buscando, estava correndo. Correndo para longe de toda sorte de obviedades. Mas agora que não corria mais e sua mente cansada também desacelerava, velhinhas simpáticas e quitutes já não pareciam tão maus assim.
Óbvio. Sentiu-se um tolo, muito mais do que óbvio. O trabalho de escrever uma história original com um tema comum se tornava agora mais um desafio do que um motivo de vergonha. Lembrou-se que as velhinhas, os pais, filhos, sítios, viagens, os professores da escola, os sargentos da época do exército, os trotes de faculdade, são exatamente a plataforma de um escritor. Não importa o quão cotidiano, banal e comum sejam essas reminiscências, elas pertencem a quem as tem e sempre são originais. E acabam ficando ainda mais diferentes na percepção de quem as lê.
Ainda exausto, mas pensativo, lembrou-se dos leitores. Lembrou-se que devia tê-los esquecido há tempos, pelo menos enquanto estivesse à frente do teclado do computador. Lembrou-se que precisava apenas escrever sobre a avó e o pão de queijo sem maiores pudores criativos. Lembrou-se e riu. Sentia-se um tolo, mas no melhor ânimo que já tivera em toda a sua fuga interna pelas ruas da cidade, ria, ria, de si mesmo. Feliz, cansado, sereno, ajoelhou-se pegou uma pedra e começou escrever ali mesmo no asfalto:

“Como palavras como
Pão de queijo, como
minha avó dizia
“Come, meu filho, à vontade!“
Faz bem comer
E como!
Pão de queijo de vó
Alimenta a alma
E poesia oxigena o corpo.”


Sem assinar largou a pedra no chão. Levantou-se e para a primeira pessoa que viu em sua frente, depois de uma respiração profunda, perguntou, “Você sabe onde tem um ponto de táxi?”

Um comentário:

  1. Adorei o conto!
    Nada como poesia e uma boa ficção pra alegrar o deserto do real.

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