Trocou rapidamente de canal. Apesar da
truculência do reflexo, fingiu que era apenas o bom e velho zapping. Não tinha
o costume de zapear. As cores, os brilhos, os temas percebidos em três segundos
de comercial, fizeram com que o gatilho disparasse. Os acordes da música
reconhecida, repetida, ano após ano, causavam paura nela. O mesmo sentimento
ocorrera dias antes ao entrar no condomínio e dar de cara com uma tímida
iluminação diferente em duas ou três sacadas de apartamentos. Uma virada
violenta de rosto. Gatilho, como o dedo no controle. Não ver, não ver, impedir
a imagem de chegar à mente e trazer memórias.
Entrou no seu prédio com a cabeça, se não baixa, meio inclinada e os olhos tarantinescamente entreabertos, alertas, suspeitando de cada fresta. Elevador direto. Chegou ao seu andar e reconheceu em uma das portas vizinhas, como um fantasma, o vulto de elementos em vermelho.
Entrou, estava livre.
Nas redes sociais, alguns já faziam piadas: elas
as evitava. Os dias passavam e as evidências multiplicavam-se. Decorações,
mensagens, comerciais, piadas. Ofertas, compras, especiais, convites. Foco no
trabalho, não pensar, não pensar, trabalhar, correr, correr, correr pra longe
da realidade que se aproximava. O estafante trabalho nunca fora tão desejado.
Apesar de toda a blindagem o tema surgia em seu pensamento. Essa era uma proteção que ela não conseguia fazer. Não se livrava de si. Na verdade toda sua fuga vinha da memória constante de algo a resolver, que ela sabia que não se resolvia assim tão fácil, mas estava lá pinçando seu cérebro de leve, aumentando o grau do martírio dia a dia.
- Não aguento mais, preciso dizer - soltava
enquanto seu marido a via perder a cor rapidamente - Eu estou negando o Natal.
EU ESTOU NE-GAN-DO O NATAL! Não quero fazer decoração, nem mesmo aquele único
enfeitizinho que a gente coloca na porta.
Enquanto ela soltava tudo que a havia atormentado nos últimos dez dias, seu marido comprimia o rosto uma ou outra vez, como se estivesse na situação mais delicada de sua vida, porém sabendo que aquilo terminaria dali a quarenta segundos.
- É isso. Vou fazer até quando der. Vou procrastinar, protelar, fugir, correr até o último segundo. Não quero resolver nada. Não quero negociar, fazer contas, ceder, brigar, tentar agradar quinze lados diferentes e ser obrigada a mudar tudo no final. Se é pra sofrer, que seja de sopetão como um band-aid arrancado.
Suspirou.
Seu marido esperou estratégicos sessenta segundos
salvadores antes de cravar:
- Eu sei. Eu sei que você está fazendo isso. Eu
estou junto.
Ela quase sorriu e isso bastava.
Caminharam juntos na árdua luta de negação do
Natal mais uns quatro dias, até que foram a três shoppings no mesmo fim de semana
porque decidiram comprar os presentes com um mês de antecedência, antes da
loucura do comércio chegar.
Mesmo depois do band-aid arrancado, o casal passa
bem.
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