Vestiu-se
apressadamente. Suas velhas botas, que nunca foram amistosas, entraram como
luvas. Prendeu parte do cabelo, só para não deixar explícito o desgranhado dos
seus lisos e castanhos fios. Um penteado elegantemente desarrrumado como o de
toda mulher parisiense. Ela não era parisiense, nunca tinha ido a Paris, nunca
havia saído do país. Jogou o cachecol no pescoço, dando as voltas necessárias
apenas para cobrir a nuca. As correntes formadas pelo cachecol repousavam em
seu colo em um descompasso harmônico. Seus olhos estavam inchados, não se
abriam por completo, mas a adrenalina do atraso fazia com os arregalasse vez ou
outra.
Saiu
correndo da kitnet sem nem beber água, que era a única coisa que ela tinha na
geladeira. Pegou o ônibus, chegou à estação, entrou no metrô. No vagão uma
menina de uns 5 anos com as unhas pintadas de glitter verde e rosa a olhava
insistentemente. As duas trocaram sorrisos. A menina, acompanhada de uma
cansada e distraída mãe, começou a escrafunchar no interior de sua pequenina mochila
escolar com desenhos de uma personagem cópia barata da Barbie. Achou um batom,
daqueles baratos que se dá para a criança brincar. Começou a passar. A mãe
olhou para a filha com um ar de quem daria uma repreensão, mas a estafa de uma
curta noite e o peso do dia a dia não permitiu que ela o fizesse. Não disse
palavra. A menina terminou a sessão de maquiagem e com o batom devidamente
amassado, restando pouco para ser usado, ofereceu-o à nova amiga de olhares.
Ela o aceitou, e, com olhos ainda inchados e um sorriso simples, balbuciou um
“obrigado”. Pouco se podia aproveitar dali. Enfiou o dedo dentro do recipiente
do batom, para tirar o que tivesse dali e passou na boca. A mãe da menina
levantou, a estação delas chegara. Puxada de maneira um tanto quanto brusca, a
menina sorriu, enquanto olhava para sua amiga de maquiagem. Ela devolveu o
sorriso, enquanto lembrava que sua estação era a próxima.
Atrasada,
correu os quinhentos metros que separavam a saída da estação do seu local de
trabalho. O calor da corrida ruborizou as maçãs de seu rosto. Chegou esbaforida
como sempre. Linda como nunca, como sempre, como nunca. Enquanto corria para
chegar ao seu setor, percebia os olhares de recepcionistas, clientes,
funcionários e hóspedes e em sua cabeça os enxergava com ar de reprovação,
quando na verdade eram olhares lisonjeiros. Sabia-se desleixada, enxergavam-na
linda.
“Isso
são horas? Perguntou sua chefe.” “É, eu sei.” “Bom, pelo menos você se arrumou,
aliás, agora sim, hein? Todo mundo se perguntava quando é que você iria se
tocar. Vai lá, o pessoal tá te esperando. Depois me conta onde você fez o
cabelo, e quanto pagou nessa bota retrô lindíssima!”
Enquanto
ela corria pra sala de reunião a chefe suspira:
“Nossa
menina, vc saiu de dentro de um “extreme makeover” pra comprar tudo isso, só
pode ser”.
No
que ela responde para si “Extreme? Sem dúvida, todos os dias”.
-
Entra lettering “Intimalight. Extreme só o seu conforto.” E aí o que acham?
-
Hummm, um curta em linguagem acelerada, pra web. Ta, público feminino, classe
B, 21 a 35...ah, a fotografia vai ser meio instagram,
né? Pega a classe C no aspiracional... é...gostei, mas e se a gente trocasse a
menina do metrô por um homem?
-
Mas e o batom?
-
Que batom?
-
O batom que a menina dá pra ela...
-
Ah, esse batom. Não é importante. O cara dá um beijo nela e a boca fica
maquiada depois.
-
Sei...
-
Outra coisa. A geladeira no começo
-
Que é que tem?
-
O que é que não tem. Não tem comida nenhuma lá! Temos que colocar iogurte,
suco, uns brócolis pra dar aquela cara natureba, mas com estilo. Aí rola um
aspiracional e a gente atinge a classe C.
-
Classe C, mas vocês disseram que era B...
-
É, mas quando faz classe B, tem o aspiracional, né? E você sabe, classe C adora
um iogurte.
-
Iogurte.
-
Tá tranquilo, né? Faz essas mudancinhas aí no roteiro, nada hard, né? Até
porquê nosso produto é light “intimalight” hahahahaha!
-
É , extreme deve ser só o conforto, eu criei isso. Eu criei isso?
Saiu
da reunião repetindo:
-
Eu criei isso, eu criei isso, eu criei isso...extreme?
Dizem
que aquele homem nunca mais falou outra frase na vida e vive recluso em algum
lugar do Brasil no qual repete seu mantra dizendo pra si mesmo que criou tudo o que olha.
Outro
profissional tocou o projeto que no final tinha umas cenas com a moça andando
de bicicleta e flores em animação saindo de onde ela passava.
Fim
Lindo.
ResponderExcluirAssustador.
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